quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A campainha, o beijo e a lágrima

Não imaginou que doeria tanto despedir-se. Seus cabelos brancos não resistiriam a emoção de dizer adeus, uma vez que não sabia se teria a oportunidade de dizer olá novamente. Que incômodo pensar no futuro quando o presente pesava tanto e era tão sofrido.
O taxista o chamou pelo nome com a intimidade que uma ligação de celular para o ponto de táxi permitia e aguardou em silêncio a procissão que descia vagarosamente as escadas. Não era sua a emoção que tomava aquele momento.
Os cabelos brancos vinham primeiro, marcando o passo. Um degrau de cada vez. Não tinha pressa, não queria deixar que um pedaço seu fosse embora. Não. Em um piscar de olhos elaborou um plano. Deixar-se-ia cair no último degrau, quebraria alguns ossos, aproveitariam o táxi para levá-la ao hospital e ele perderia o vôo. Quando abriu os olhos novamente, já tinha desistido da ideia. Não queria causar sofrimento. Pisou no último degrau com convicção. Deu mais um passo e respirou fundo antes de virar a chave que abriria o portão. Com outro passo já estava na rua.
A luz do meio dia feriu seus olhos e foi obrigada a fechá-los por um segundo. Na escuridão a lembrança de quem era, o que fizera, quem amara, a quem ajudara. Enfim, sua vida saltou da infância à velhice tão rápida e nitidamente como o brilho do sol.
Abriu os olhos e viu a procissão que ganhava o portão. Parada viu passarem pessoas queridas e outras nem tanto, mas que eram imprescindíveis no momento. A que mais importava, curiosamente ficara por último. Parada, apoiando a mão no portão, sabia que teria o privilégio de ser a primeira a despedir-se. Queria ter a oportunidade de usar todo o tempo permitido não importando quanto fosse.
Sorriu e não entendeu quando viu sua carne passando displicentemente em direção aos outros participantes da cerimônia de despedida. Sentiu sua pele ser tocada pelos beijos e abraços, sentiu seu coração bater mais forte a cada sorriso, sentiu seu sangue fortalecer-se a cada palavra de incentivo. Quando finalmente colocou seus olhos nos seus olhos não agüentou a dor e fechou-os por um segundo.
Nesse instante, o que viu e sentiu foi impossível de conter. O amor que sentia ao casar-se, o prazer que teve na concepção, a felicidade da primeira palavra, a consternação da primeira rival, o orgulho do diploma. Viu de olhos fechados que o caminho já estava traçado. Nada poderia fazer para voltar atrás.
Esperou que se abaixasse antes de lhe oferecer o rosto para o beijo. Esperou ser beijada com força. Esperava que mostrasse o quanto doía dizer adeus, separar a carne da carne. Esperou. Esperou. Esperou. Nada aconteceu. Ele não a beijava! Ele não a beijou. Ele.
Encolheu os ombros como quem está totalmente perdida, sem rumo, sem bússola e sem direção. Não entendeu o gesto. Olhou dentro dos seus olhos e não viu sua imagem. Não sabia o que via. Um misto de medo e decepção formou-se em seus pensamentos. Porquê?
Um mundo sem som, sem luz e sem cheiro explodiu nesse momento. Tudo o que era, o que amava e o que fizera deixou de ter sentido. Piscou os olhos e não viu nada.
Quando os abriu, só viu o barulho da porta do táxi. Paralisada por um segundo, com os braços vazios no ar esperou o conforto de agarrar uma palavra. Não pode. Não compreendera nada até aquele momento. Não até sua boca recusar--se a tocar seu rosto. Não até o táxi ir embora. Não.
Chorou. Sua lágrima molhou o chão estéril e fez brotar o arrependimento. Entrou já trancando portão e subiu as escadas sem piscar.

Alexander Martins

terça-feira, 29 de setembro de 2009

No Formol

A vida já
Se foi.
A matéria por outro lado não pode resistir sem a força
do formol